quarta-feira, 26 de maio de 2010

Que sociedade? Quais humanos?

[...]”A ciência e a técnica aparecem como uma benemerência pelo valor moral que outorgam aos seus cultores, e, muito naturalmente, e com mais forte razão, aos patrocinadores. O laboratório de pesquisa, anexo à gigantesca fábrica, tem o mesmo significado ético da capelinha outrora obrigatoriamente eregida ao lado dos nossos engenhos rurais.”
Álvaro Vieira Pinto





[...]”os novos métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro.
[...]”o significado e o alcance objetivo do fenômeno americano, que é também o maior esforço coletivo até agora realizado para criar, com rapidez inaudita e com uma consciência do objetivo jamais vista na história, um tipo novo de trabalhador e de homem. A expressão ‘consciência do objetivo’ pode parecer pelo menos espirituosa a quem recordar a frase de Taylor sobre o ‘gorila amestrado’. Com efeito, Taylor expressa com brutal cinismo o objetivo da sociedade americana: desenvolver em seu grau máximo, no trabalhador, os comportamentos maquinais e automáticos, quebrar a velha conexão psicofísica do trabalho profissional qualificado, que exigia uma certa participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao aspecto físico maquinal.”

Antonio Gramsci


Que sociedade? Quais humanos?

As duas passagens acima dos autores referidos, dialogam com o contexto no qual optei por refletir nestas palavras. Mas, para tanto, considero necessário apresentar uma questão introdutória para a compreensão lógica destas palavras. Assim sendo, trago a questão da centralidade da organização humana através do seu trabalho exercido, na transformação do humano com a natureza e nas relações entre eles. Ora, se o ser humano se organiza conforme suas condições e relações de trabalho, entendendo todas as formas de atividade humana e sobrevivência como trabalho, então, o sistema em que o trabalho se organiza influencia diretamente nas relações humanas.
Desde a construção moral, passando pelas formas sentimentais (ou de espiritualidade humana), até as formas mais materiais de relacionamento inter-subjetiva.
Com isso, reporto-me à passagem de Álvaro Vieira Pinto, onde o autor traz a técnica disfarçada de tecnologia, também como atributo de valor moral, ou seja, um construto de um pequeno grupo dominante que existe e sempre existiu ao longo dos processos de rompimento político-histórico, e que à grande massa aparece como uma espécie de “benfeitoria” para a melhoria da qualidade de vida humana.
Desta mesma forma, Gramsci, na passagem relacionada, traz o projeto de organização de trabalho que enraíza na organização de vida humana. O processo de industrialização pediu ao longo da sua implementação, que os trabalhadores fossem seres humanos caracterizados como um “novo homem”. Aquele que Ford e Taylor queriam que produzisse cada vez mais, com cada vez menos intervenção espiritual sobre a produção. E isso refletiu-se também nas relações sociais. Nos tratos humanos, nas condições de agrupamentos destes, nas perspectivas morais, nas formas e modelos de vida que sustentassem o perfeito funcionamento das engrenagens de produção.
Ao longo do século passado, algumas contradições foram sendo externalizadas e sucumbindo aos processos produtivos, pois a fórmula “gorila amestrado” apresentou-se e apresenta-se até hoje, com picos de resistência social, não sendo assim tão fácil sua implementação, pois as contradições alavancam acima de qualquer coisa, um motor de luta que alimenta um processo de resistência humana às mais diversas formas de coerção e opressão. Em torno disso, os mentores da engrenagem da técnica do capital, perceberam que alguns conflitos podem ser utilizados ao seu favor.
Dito isto, podemos perceber diversos movimentos de confusão das lutas sociais, pois o que era tratado como inimigo, hoje é internalizado no discurso do capital, e devolvido aos trabalhadores e à sociedade, de forma assimilada. Por exemplo: o sistema produtivo percebeu que falar em diversidade é necessário, pois a sociedade pede por direitos, pede por igualdades, pede por sustentabilidades, pede por específicas liberdades humanas. Assim, por sua vez, a publicidade do sistema do capital opressor, trata hoje, de discursar sobre estes temas e parecer que o velho capitalismo malvado de outros tempos, hoje importa-se com os seres humanos e com sua integridade física e moral.
Hoje, muitos discursos se confundem com lutas sociais históricas, pois alguns bancos privados falam em “mundo sustentável”, ao passo que se o mundo fosse sustentável, seus motores parariam de funcionar. Assim como a questão das mulheres. Foi-lhes “permitido” o direito de trabalhar e ser mãe, mas ainda recebem muito menos que os homens, e geram diversos problemas com referência à gestação. O que gerar demora, ou desperdício ao lucro, é problema de produtividade, e por sua vez, é crise financeira no mundo dos grandes dragões.
Hoje, o capitalismo veste exatamente do discurso das lutas sociais, para amenizar suas brutalidades, como refere-se Gramsci, e possibilita que nasçam alternativas, que, à primeira vista, parecem sensatas. O debate sobre a “terceira via”, é um deles. Ameniza a ira do capitalismo selvagem, acalma movimentos sociais e devolve à sociedade um capitalismo disfarçado de “bonzinho”.
E assim, as relações sociais e o trato dos seres humanos vai acompanhando a lógica. Assim, os conflitos e as contradições vão se dando, e os discursos nas mais diversas comunidades do globo, vão sendo conduzidos pelas massas que necessitam da organização do trabalho para tirar seu sustento de vida.
Desta forma, o lugar onde alguém não se coloca, no vácuo é que não há de ficar, pois certamente algo planejado para ali, já está.

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