sábado, 31 de março de 2018

Dos olhos.



Essa agora de preconceito virtual com textão me fez ter vontade de voltar a desaguar meu fantástico mundo de Bob no blog (que estava cheio de teias de aranha). Aliás, me reli. Acho que transitei de me sentir uma adolescente para ver uma mulher (temos sim adolescentes de 30 e poucos anos). Foi gostoso, pois ri horrores da minha cara, e depois vi o quanto mudei. AINDA BEM! Mas vi também que tem coisas que andam comigo ainda hoje. Sorte a minha, porque são jeitos de encarar a realidade plena de afeto no peito. Pois lá vai:

Quando uma coisa dentro de ti te avisa que é necessário transbordar, obedeça teus sentidos. Não tranque. Ouça teu corpo.
Pois me provoca desde sempre e nos últimos momentos de descobertas incríveis, tem me provocado ainda mais essa reflexão sobre nossos sentidos, sobre corpo e alma, sobre ser e estar no mundo, sobre o tempo e sobre a brevidade da existência e quanto não somos ainda capazes de aproveitar cada minuto dessa experiência louca que é viver.

Está cheio de coisas aí para prestarmos atenção. Coisas bem simples, nada mirabolantes. Coisas do dia a dia, sons, toques, cheiros, gostos, cores, gestos. Pode ser parada num semáforo. Pode ser no mercado comprando pão. Pode ser aquela hora que se estressou com alguma frustração. E o mais incrível, elas não têm hora para acontecer! Não precisa ser quando está numa situação hipoteticamente perfeita e tranquila. Pode ser sim, no meio do caos e da correria. Basta observar-se. E observar o entorno. O resultado desse esforço? Qualidade de vida quem sabe... ou talvez paz no coração diante das diversas situações que a vida nos traz (boas e ruins). Ou pode ser no mínimo, um estado leve e sutil de lucidez (sim, porque às vezes parece que estamos virando um bando de estressado lunático correndo não se sabe para onde nem por que - me incluo nisso muitas vezes). Ou pelo menos tentativas de lucidez. Já está de bom tamanho.

Tomando banho hoje me palpitou: preciso voltar a transbordar minha escrita, seja nos quadrinhos pintados, seja na internet, seja onde for, mas dentro aqui não pode ficar. O que fazer com isso? Sei lá, não serve para nada, não se pode vestir, não se pode comer, não se pode passar no cabelo, mas me vem Marx na cabeça quando fala sobre o trabalho livre numa sociedade de sujeitos livres, que é sempre criativo e genuíno. Que produto e produtor se entrelaçam numa coisa só, que a sua produção lhe faz sentido. Sentido! Então aqui está o meu eu ‘saindo para fora’.

Nada além de palavras de quem está num processo de observação contínua e auto-observação contínua. Não como quem julga, não como quem se coloca acima, não como quem dita o positivo e o negativo, mas como quem simplesmente está atenta na realidade contemplando-a de uma forma cada vez mais apaixonada para viver um pouquinho melhor e poder humildemente ajudar quem quiser ser ajudado a viver um pouquinho melhor também. Como já escutei: ‘Ah, mas estou cheio de complicações para resolver e etc’... eu também meus amigos... eu também! E?!...

(...e que a vida segue sendo deixada para depois ou para situações ideais – ainda hoje, em 2018 – e se a gente morre amanhã? Que louco né, a situação ideal de apreciar cada minuto vai para a tumba, para o limbo, para um campo verdinho cheio de coelhos, para as nuvens, para Nárnia, para outro planeta ou seja lá o que se acredite!).

Nisso acabei escrevendo outro dia sobre os pés. Sobre a necessidade de mudar nossa relação com essa partezinha tão importante de nossa conexão com tudo que há, pois ainda não sabemos voar! Sobre a adaptação necessária quando não os temos ou quando eles não tem a força que precisavam. E sobre o carinho que ele merece diante de toda nossa sustentação física e emocional perante a realidade. Agora quem transborda são os olhos.

Mandamos o homem pra lua, descobrimos nanopartículas, fissuramos átomos (!), operamos pessoas com robôs e vídeos de outro lado do mundo, construímos edifícios que atingem as nuvens, dividimos o som no tempo e descobrimos que dele sai uma nota musical (!), aprendemos a fórmula de báskara (ou deveríamos ter aprendido) nossa, tanta coisa a gente criou, tantas outras descobrimos, mas não aprendemos a olhar nos olhos de quem está do lado! Não conseguimos dizer o que sentimos. Engatinhamos na arte de pedir desculpa e não cometer mais o mesmo erro. Entalamos de emoções e sentimentos guardados. Não os deixamos ir. Nos agarramos em mediocridades cotidianas e tomamos nossas auras delas. Jogamos para dentro do corpo coisas que depois não sabem como sair. Transformamos emoções em doenças físicas. Nos prendemos em historinhas destrutivas que em nada farão o mundo nem a realidade mudar. Será mesmo que é de tanta tecnologia que estamos precisando, ou será que são pessoas mais ‘humanas’, livres de fantasmas e plenas de amor que estamos precisando inventar?

Se inventamos o amor, porque não inventarmos ainda mais meios de espalhar ele por aí?

Gente, cadê olhos nisso? Rá! Tudo isso começou a aparecer na minha cabeça quando pensei na capacidade INCRÍVEL que os olhos possuem de falar. Olhos que falam. Mais e mais tenho visto olhos aflitos, olhos de desejo, olhos amorosos, olhos angustiados, olhos famintos, olhos felizes, olhos de prazer, olhos de ternura e olhos entristecidos. Comecei a perceber cada vez mais, quando um corpo e uma boca falam alguma coisa e os olhos estão falando outra coisa. Eu também devo fazer isso, ora vejam, somos humanos contraditórios. Porém, comecei a perceber que é possível e lindo também quando olhos falam a mesma coisa que o corpo e a boca. Comecei a ver que algumas coisas se escondem através da expressão física mas não conseguem fugir imbativelmente do que o olho está dizendo. Olho é nu. Não pode ter “nudes” mais fatal que esse. Por isso a gente ainda prefere não mexer nessa profundeza. Corpo não, corpo a gente até disfarça. A fala então, essa a gente mais aprendeu a arte de manipulá-la. Desde crianças somos ensinados pela vida a representar a fala, mas raramente a desnudar a fala. A boca é capaz de tudo (mas não vou menosprezá-la, ela pode ser igualmente incrível - e é.). Já o olho só sabe ser ele mesmo. E ouso dizer: ele só para de ser ele mesmo quando fecha pra sempre.

Para uma alma com olhos com medo de ser desnudada, tem uma alternativa: usar óculos escuros. Nem sempre vai ser possível, mas é um jeito. Não recomendo. Coisa mais linda são os olhos. Penso em quem não fala com os seus, por problemas visuais, e me ocorre imediatamente que essa mesma função deve ser feita com outros sentidos que me faltam conhecimento de causa, mas que existem. Porque alma transborda, senão por esta janela, certamente por alguma outra.

(uma pausa para indicar o documentário lindo chamado Janela da Alma – assisti há milênios atrás e faz uma ode aos olhos também).

(outra pausa aleatória: o Jorge Drexler é foda).

Vou parando de devaneios por aqui, desejando que cada vez mais e mais pessoas consigam se olhar nos olhos, consigam equilibrar corpo, alma com fala e olhar, consigam apreciar sutilezas da vida, consigam fazer-se presentes em suas próprias vidas, consigam amar intransitivamente, consigam fazer bom uso de sua passagem por esse planetinha que está precisando tanto de um carinho, de uma atenção, de ser escutado, de ser olhado, de ser respeitado e apreciado. Não falo somente de cuidar da natureza e do meio necessário para nos mantermos vivos, mas falo também de cuidarmos mais uns dos outros com tudo que temos direito, sei que já tem muita gente fazendo isso com muito amor.
Se por acaso chegou lendo até aqui, experimente ainda hoje sair na rua e prestar atenção em tudo sem emitir julgamentos, apenas com olhar terno e atento, aprendendo e trocando algo novo cada dia mais. Coisas FANTÁSTICAS vão te acontecer na vida quando olhar dentro dos olhos de quem está contigo. De quem está te atendendo. De quem está conversando. De quem está interagindo. De um filho, de uma avó, de um amigo, de um amor.

Ano passado estava dirigindo distraída e parei atrás de uma carreta que carregava um boizinho bem bonitinho, meio peludo. Era dia de abate. Eu já sabia que era dia de abate. Parei bem atrás da carreta, o boizinho sacudia dentro dela, as orelhas pulavam em cada lombada que passava a carreta, até que o trânsito parou. Talvez eu preferisse não ter visto nem sentido aquilo, mas o fato foi que eu vi. O bicho olhou bem dentro dos meus olhos e eu olhei profundamente dentro dos dele. Ele fazendo força para manter-se em pé diante da movimentação da carreta, me olhando fundo, não consigo expressar em palavras o que eu senti, só sei que senti toda a energia dele e seu olhar de quem sabia que algo ruim iria acontecer. Tenho como explicar? Não. Se alguém já passou por isso sobre animais e morte, vai me entender. Desde esse dia eu não consegui mais comer carne de boi, salvas raríssimas vezes que posso contar nos dedos. E automaticamente acabei parando/diminuindo com outros bichos também, que já nem era fã, mas isso é coisa para outro texto.

Ontem prestei atenção atentamente no olhar de uma criança, que, a cada frase, gesto, sorriso e movimento, me mostrava um mundo tão bonito e tão cheio de coisas para descobrir. Virar adulto não deveria inibir essa coisa toda tão linda. Vale tentar. Nunca estaremos prontos para nada. Então, mexamo-nos perante essa vida louca vida, vida breve...

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