Uma carta para a geração seguinte a da minha filha
Pode
ser para uma(um) neta(o), caso minha filha decida ter. Pode ser para outra
criança/jovem que não seja nada minha. Pode ser para quem quiser ler. Mas esta
carta vem do passado. Vem de 2013. Alguém que nasceu em 1982. Viveu as
lembranças dos anos 90. E dos anos 10. E foram nestes historicamente poucos 20
anos de memória, que vi muita coisa.
Neste
passado que é meu presente, queria contar algumas coisas.
O
intuito deste exercício é um só: pedir a vocês que não naturalizem nada.
Nem
tudo é natural. Estranhem tudo. Questionem tudo. Queiram saber de onde saiu. Queiram
saber por que é assim. Remontem as histórias das coisas para entender o mundo.
A
própria natureza chegou um dia a ser natural. Mas em 2013 já posso afirmar que
até a natureza já não é mais natural. Comemos frutos que já foram tão
modificados que já não sabemos como ele seria sem químicos agregados.
A
água, também chegou a ser natural. Já não é mais. Toda água potável que sai da
torneira já é uma mutação de nosso próprio descarte. Seja do que vem do esgoto,
seja do que vem do lixo. Se nem todo rio assim está, assim ficará.
Na
natureza e na vida social. Estranhem.
Estranhem
a intolerância doméstica. Estranhem que as pessoas estejam cada vez mais longe
umas das outras. E, no entanto, pela internet são as pessoas que mais se amam
no mundo. Estranhem a ausência do afeto. Estranhem que as pessoas pouco se
tocam.
Não
naturalizem que as relações mecânicas sejam comuns. Não pensem que é normal um
ser humano ser substituído por uma máquina. Estranhem. Um caixa eletrônico, no
meu tempo, tirou emprego de muitos seres humanos. Estranhem que no tempo de vocês
uma máquina cheia de recursos substituirá a minha profissão. Estranhem que
aprendam por máquinas. Entendam porque muitos discursam em favor das máquinas
pois são mais potentes que um ser humano. Claro! Estranhem o fato de sermos
ensinados que os seres humanos não podem errar.
As
pessoas erram. Isso é natural. O natural não é a intolerância ao que erra. Estranhem
o tudo que for repetição do meu tempo. Nas relações humanas, estranhem hábitos
e costumes que passam de pais para filhos e no entanto desde já não andam
funcionando. Não naturalizem o que é novo, e nem o que é velho.
Estranhem
como funciona o sistema monetário. Descubram o que acontece quando cifras
passam de uma multinacional para outra. Ou quando duas se juntam. Estranhem se
até lá só existir uma única loja no mundo, que venda desde sapato, passando por
cenouras até carros. Estranhem poucos que são donos de tudo.
Não
naturalizem que o sistema capitalista destrua a natureza e nada podemos fazer. Percebam
que nascemos bebês, a única coisa que sabíamos fazer sem que nos ensinássemos,
era chorar e mamar. O resto, nós aprendemos.
E
tudo que aprendemos, podemos aprender diferente. Podemos estranhar, podemos
passar a não achar natural. Podemos perceber que o mundo é gerido por gente.
Estranhem
quando ensinarem a vocês a não confiarem nas pessoas. A não gostar de gente. Não
é natural. Nunca foi. É artificial. Estranhem.
Índios
cuidavam de todas as crianças não importava se fossem seus filhos ou não. Em
2013 ainda existem. Alguns poucos tentam manter algo da sua cultura. A grande
maioria precisa vender produtos feitos na China para sobreviver e alimentar-se.
Estranhem!
Não
naturalizem que o ser humano é um ser egoísta. Ele se torna. Se a grande
maioria o ensinar a ser assim. Não pensem que nos mais de 20 anos que tenho de
memória de vida, foi sempre assim, todo mundo aprendendo a detestar todo mundo.
Cheguei a pegar um tempo que a coisa não era tão feia. Mas está ficando pior. Cada
vez pior.
Estranhem
a competição. Tem espaço para todo mundo. Mais importante que isso, o mundo
produz comida para todo o mundo! Estranhem que algumas pessoas seguirão
passando fome no mundo porque precisam estranhar um modo de vida de que quem não
tem dinheiro não come. Até lá, não sei se usarão dinheiro, ou apenas uma tarjeta
que possui dinheiro imaginário.
Estranhem
o dinheiro imaginário. Afastem-se dele para analisá-lo. De onde sai. Eu sei que
precisarão comer, e usar o plástico mágico. Mas não o naturalizem. Porque
enquanto naturalizarem de tal forma consentida, quem estuda para manter tudo
como está ou para deixar tudo pior, estará aperfeiçoando novas formas de ganhar
mais dinheiro ainda em cima do dinheiro de vocês.
Questionem
tudo. Questionem a vida. Questionem a Guerra. A indústria de armas. A indústria
da Guerra. Porque certamente, eu estou em 2013 e até a gerações de vocês,
muitos lugares estarão em
disputa. Sabe quem ganha no vídeo-game? Quem tem mais arma,
mais munição. Um dia, em sala de aula, em 2013, eu disse que aqui no Brasil
ainda não estávamos vivendo o que vive a faixa de Gaza, porque o petróleo ainda
manda na economia. Mas não faltam muitas gerações para a riqueza migrar para a água
potável.
Onde
tem maior concentração de água potável no mundo? Em 2013, não imaginamos um
ambiente de guerra declarada. Mas estranhem! Muitas Guerras acontecem sem as
pessoas saberem. Não vivi isso, mas na Ditadura Militar no Brasil, teve quem
nem soubesse do que estava acontecendo!
Estranhem
a TV. A TV aberta, a TV fechada. Estranhem a forma como as novelas induzem as
famílias a se comportarem. Ao comportamento das mulheres. Das crianças.
Na
cultura, cuidado! Não naturalizem o que o rádio impor a ouvir. Se aparecer um
estilo musical novo, não desqualifiquem, entendam de onde veio e o que
significa. E se criarem coisas novas, não se abatam com o conservadorismo de
gente que terá minha idade. Porque a guitarra foi um instrumento elétrico que
mais chocou o mundo, mais irritou a camada conservadora da sociedade, quando na
realidade foi a abertura de grandes processos de gente que não se contentava
com imposições. Com consentimentos.
Não
é natural que muitas pessoas tenham propriedades privadas incontáveis. Perguntem
de onde saiu tudo isso. Terras, quantos hectares de terra um único CPF é capaz
de ter? Não é, não foi e nunca será natural.
Respeitem
as pessoas. Questionem com solidariedade. Nem todo questionamento precisa ser
truculento. Escutem as pessoas. Pergunte a história delas. Pode ser o parente
mais próximo. Suas histórias de vida ressignificarão também a de um núcleo
familiar inteiro. Entendam seus comportamentos. Porque o ser humano é o único
animal capaz de retomar sua história. Nas aldeias indígenas, os mais velhos
eram os mais respeitados. Porque carregavam a aldeia de história. Em 2013,
maltratamos velhinhos. Marginalizamos sabedoria. Ignoramos a história. Assim a
matamos. E deixamos que os outros construam nosso futuro ao não enxergarmos
nossa história.
Questionem
suas certezas. Eu vivo questionando as minhas. Porque muitas vezes pensamos ter
certeza das coisas.
Este
termo “desnaturalização”, foi muito utilizado por uma amiga chamada Elen
Tavares. Eu espero que ela fique velhinha junto comigo e possamos reescrever
muita história.
Sinto
a necessidade constante de “desnaturalizar” as coisas, as relações, as ações,
tudo. Porque enquanto tem coisas em 2013 que são lindas, tem outras que não são.
Das coisas lindas, contemplamos, dividimos, solidarizamos, afagamos, abraçamos,
partilhamos, sorrimos!
Em
2013 ainda temos flores coloridas para contemplar! Ainda existem pássaros que não
apenas pombos nos locais mais poluídos das cidades. Temos árvores. Nos lugares
onde o capital não devastou, temos árvores! Não sei quantas teremos na geração
de vocês. Mas onde houver alguma, sentem embaixo dela. Lua iluminando um gigantesco mar! Sintam o cheiro da
terra. O cheiro de uma flor. A cor de uma flor. O poder do sorriso. Flores te
fazem sorrir. Seja menino, seja menina. Não naturalizem que só meninas podem
ter o prazer de ver a cor de uma flor. Uma borboleta colorida te faz prestar
atenção em seu voo. Espero que conheçam as tantas borboletas que têm no Brasil.
Será que ainda existirão joaninhas? Elas são fantásticas! Um inseto pequeno que
dá alegria. Acreditem. Encontrei uma certa vez, na praia. Um lugar que jamais
imaginaria encontrar uma joaninha. E ela me fez sorrir. Devolvi ela para o meio
do mato, pois achei que morreria na areia.
Não tenham medo. Chamarão por uma eternidade, as pessoas curiosas da vida, questionadoras, de chatas. Abstraiam... pois os chatos também sabem sentir satisfação, amor, prazer.
Entre
o que houver de novo, e o que conhecerem de velho, desnaturalizem e conheçam
melhor. Porque não sei que tipo de carta poderão escrever aos netos de seus
netos. Mas que as palavras sigam sendo para sempre, sobretudo, endereçadas a
seres humanos capazes de se colocarem no lugar dos outros enquanto a ordem
mundial seguir chamando-se de “Dona Injustiça”. No tempo que for.