quarta-feira, 29 de maio de 2013

Uma carta para a geração seguinte a da minha filha


Pode ser para uma(um) neta(o), caso minha filha decida ter. Pode ser para outra criança/jovem que não seja nada minha. Pode ser para quem quiser ler. Mas esta carta vem do passado. Vem de 2013. Alguém que nasceu em 1982. Viveu as lembranças dos anos 90. E dos anos 10. E foram nestes historicamente poucos 20 anos de memória, que vi muita coisa.

Neste passado que é meu presente, queria contar algumas coisas.

O intuito deste exercício é um só: pedir a vocês que não naturalizem nada.

Nem tudo é natural. Estranhem tudo. Questionem tudo. Queiram saber de onde saiu. Queiram saber por que é assim. Remontem as histórias das coisas para entender o mundo.

A própria natureza chegou um dia a ser natural. Mas em 2013 já posso afirmar que até a natureza já não é mais natural. Comemos frutos que já foram tão modificados que já não sabemos como ele seria sem químicos agregados.

A água, também chegou a ser natural. Já não é mais. Toda água potável que sai da torneira já é uma mutação de nosso próprio descarte. Seja do que vem do esgoto, seja do que vem do lixo. Se nem todo rio assim está, assim ficará.

Na natureza e na vida social. Estranhem.

Estranhem a intolerância doméstica. Estranhem que as pessoas estejam cada vez mais longe umas das outras. E, no entanto, pela internet são as pessoas que mais se amam no mundo. Estranhem a ausência do afeto. Estranhem que as pessoas pouco se tocam.

Não naturalizem que as relações mecânicas sejam comuns. Não pensem que é normal um ser humano ser substituído por uma máquina. Estranhem. Um caixa eletrônico, no meu tempo, tirou emprego de muitos seres humanos. Estranhem que no tempo de vocês uma máquina cheia de recursos substituirá a minha profissão. Estranhem que aprendam por máquinas. Entendam porque muitos discursam em favor das máquinas pois são mais potentes que um ser humano. Claro! Estranhem o fato de sermos ensinados que os seres humanos não podem errar.

As pessoas erram. Isso é natural. O natural não é a intolerância ao que erra. Estranhem o tudo que for repetição do meu tempo. Nas relações humanas, estranhem hábitos e costumes que passam de pais para filhos e no entanto desde já não andam funcionando. Não naturalizem o que é novo, e nem o que é velho.

Estranhem como funciona o sistema monetário. Descubram o que acontece quando cifras passam de uma multinacional para outra. Ou quando duas se juntam. Estranhem se até lá só existir uma única loja no mundo, que venda desde sapato, passando por cenouras até carros. Estranhem poucos que são donos de tudo.

Não naturalizem que o sistema capitalista destrua a natureza e nada podemos fazer. Percebam que nascemos bebês, a única coisa que sabíamos fazer sem que nos ensinássemos, era chorar e mamar. O resto, nós aprendemos.

E tudo que aprendemos, podemos aprender diferente. Podemos estranhar, podemos passar a não achar natural. Podemos perceber que o mundo é gerido por gente.

Estranhem quando ensinarem a vocês a não confiarem nas pessoas. A não gostar de gente. Não é natural. Nunca foi. É artificial. Estranhem.

Índios cuidavam de todas as crianças não importava se fossem seus filhos ou não. Em 2013 ainda existem. Alguns poucos tentam manter algo da sua cultura. A grande maioria precisa vender produtos feitos na China para sobreviver e alimentar-se. Estranhem!

Não naturalizem que o ser humano é um ser egoísta. Ele se torna. Se a grande maioria o ensinar a ser assim. Não pensem que nos mais de 20 anos que tenho de memória de vida, foi sempre assim, todo mundo aprendendo a detestar todo mundo. Cheguei a pegar um tempo que a coisa não era tão feia. Mas está ficando pior. Cada vez pior.

Estranhem a competição. Tem espaço para todo mundo. Mais importante que isso, o mundo produz comida para todo o mundo! Estranhem que algumas pessoas seguirão passando fome no mundo porque precisam estranhar um modo de vida de que quem não tem dinheiro não come. Até lá, não sei se usarão dinheiro, ou apenas uma tarjeta que possui dinheiro imaginário.

Estranhem o dinheiro imaginário. Afastem-se dele para analisá-lo. De onde sai. Eu sei que precisarão comer, e usar o plástico mágico. Mas não o naturalizem. Porque enquanto naturalizarem de tal forma consentida, quem estuda para manter tudo como está ou para deixar tudo pior, estará aperfeiçoando novas formas de ganhar mais dinheiro ainda em cima do dinheiro de vocês.

Questionem tudo. Questionem a vida. Questionem a Guerra. A indústria de armas. A indústria da Guerra. Porque certamente, eu estou em 2013 e até a gerações de vocês, muitos lugares estarão em disputa. Sabe quem ganha no vídeo-game? Quem tem mais arma, mais munição. Um dia, em sala de aula, em 2013, eu disse que aqui no Brasil ainda não estávamos vivendo o que vive a faixa de Gaza, porque o petróleo ainda manda na economia. Mas não faltam muitas gerações para a riqueza migrar para a água potável.

Onde tem maior concentração de água potável no mundo? Em 2013, não imaginamos um ambiente de guerra declarada. Mas estranhem! Muitas Guerras acontecem sem as pessoas saberem. Não vivi isso, mas na Ditadura Militar no Brasil, teve quem nem soubesse do que estava acontecendo!

Estranhem a TV. A TV aberta, a TV fechada. Estranhem a forma como as novelas induzem as famílias a se comportarem. Ao comportamento das mulheres. Das crianças.

Na cultura, cuidado! Não naturalizem o que o rádio impor a ouvir. Se aparecer um estilo musical novo, não desqualifiquem, entendam de onde veio e o que significa. E se criarem coisas novas, não se abatam com o conservadorismo de gente que terá minha idade. Porque a guitarra foi um instrumento elétrico que mais chocou o mundo, mais irritou a camada conservadora da sociedade, quando na realidade foi a abertura de grandes processos de gente que não se contentava com imposições. Com consentimentos.

Não é natural que muitas pessoas tenham propriedades privadas incontáveis. Perguntem de onde saiu tudo isso. Terras, quantos hectares de terra um único CPF é capaz de ter? Não é, não foi e nunca será natural.  

Respeitem as pessoas. Questionem com solidariedade. Nem todo questionamento precisa ser truculento. Escutem as pessoas. Pergunte a história delas. Pode ser o parente mais próximo. Suas histórias de vida ressignificarão também a de um núcleo familiar inteiro. Entendam seus comportamentos. Porque o ser humano é o único animal capaz de retomar sua história. Nas aldeias indígenas, os mais velhos eram os mais respeitados. Porque carregavam a aldeia de história. Em 2013, maltratamos velhinhos. Marginalizamos sabedoria. Ignoramos a história. Assim a matamos. E deixamos que os outros construam nosso futuro ao não enxergarmos nossa história.

Questionem suas certezas. Eu vivo questionando as minhas. Porque muitas vezes pensamos ter certeza das coisas.

Este termo “desnaturalização”, foi muito utilizado por uma amiga chamada Elen Tavares. Eu espero que ela fique velhinha junto comigo e possamos reescrever muita história.

Sinto a necessidade constante de “desnaturalizar” as coisas, as relações, as ações, tudo. Porque enquanto tem coisas em 2013 que são lindas, tem outras que não são. Das coisas lindas, contemplamos, dividimos, solidarizamos, afagamos, abraçamos, partilhamos, sorrimos!

Em 2013 ainda temos flores coloridas para contemplar! Ainda existem pássaros que não apenas pombos nos locais mais poluídos das cidades. Temos árvores. Nos lugares onde o capital não devastou, temos árvores! Não sei quantas teremos na geração de vocês. Mas onde houver alguma, sentem embaixo dela.  Lua iluminando um gigantesco mar! Sintam o cheiro da terra. O cheiro de uma flor. A cor de uma flor. O poder do sorriso.  Flores te fazem sorrir. Seja menino, seja menina. Não naturalizem que só meninas podem ter o prazer de ver a cor de uma flor. Uma borboleta colorida te faz prestar atenção em seu voo. Espero que conheçam as tantas borboletas que têm no Brasil. Será que ainda existirão joaninhas? Elas são fantásticas! Um inseto pequeno que dá alegria. Acreditem. Encontrei uma certa vez, na praia. Um lugar que jamais imaginaria encontrar uma joaninha. E ela me fez sorrir. Devolvi ela para o meio do mato, pois achei que morreria na areia.

Não tenham medo. Chamarão por uma eternidade, as pessoas curiosas da vida,  questionadoras, de chatas. Abstraiam... pois os chatos também sabem sentir satisfação, amor, prazer. 

Entre o que houver de novo, e o que conhecerem de velho, desnaturalizem e conheçam melhor. Porque não sei que tipo de carta poderão escrever aos netos de seus netos. Mas que as palavras sigam sendo para sempre, sobretudo, endereçadas a seres humanos capazes de se colocarem no lugar dos outros enquanto a ordem mundial seguir chamando-se de “Dona Injustiça”. No tempo que for.






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