terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Quem cuida da cuidadora? Quem cuida do cuidador?





Estava tudo indo normalmente até que recebo uma mensagem no celular bem no meio da aula. Era minha mãe. Só dizia assim: “Hj 30 anos da morte da minha mae” – só assim, não tinha ponto, não tinha til, não tinha nada. Foi o suficiente para eu levantar da cadeira no meio da minha aula de terça-feira com a Professora Carmen Machado, e ir até o banheiro. Não sei explicar o que senti, só sei que as lágrimas começaram a rolar desgovernadamente e eu me peguei pensando por quê chorava. Por que chorava se não conheci minha avó? Por que chorava se todos que conviviam com ela já haviam se acostumado trinta anos sem ela? Por que chorava se a morte, cedo ou tarde aparece principalmente nas gerações que vêm primeiro?

E um filme passou na minha cabeça enquanto arrumava o rosto no banheiro.
Minha avó Stella tem o mesmo nome da minha filha. Eu nunca a conheci, aliás, ela me viu uma vez, quando eu não tinha sequer um mês de vida e minha mãe me enfiou dentro de uma mala e burlou a passagem no hospital para poder mostrar a filha recém nascida à sua mãe que morria de câncer em Florianópolis. Foi a única vez que tive contato com ela. Com o passar dos anos e da convivência com a família e as histórias que ouvia, sempre me senti próxima a ela, mesmo sem nunca ter a visto. Via as fotos dela nas coisas da minha mãe e da minha tia avó, e achava ela bonita. Achava ela exótica. Uma mulher que parecia chamar muito a atenção por onde passava. A mãe me contava que ela só tirava fotos se estivesse bem bonita e bem arrumada, senão não deixava ninguém fotografar. Foi mãe de quatro filhos, três meninos e uma menina. Teve uma infância em orfanato e seu grande alicerce para viver foi sua irmã, onde uma cuidava da outra. Casou com meu avô e com 44 anos morreu de câncer.
Um câncer destruidor que não deu muito tempo de vida e nem de preparo para a morte. Minha mãe tinha só 24 anos e com uma baita barriga de gravidez soube que a mãe estava morrendo.
Só eu sei o que o número 44 significava para mim. Quando eu era criança o meu maior pesadelo, o impensável, o que eu não permitia nem cogitar, era a chegada da minha mãe aos 44. Parecia que cada ano que a minha mãe passava além dos 44, era um ano ganho, tamanho era o meu medo de que ela morresse de câncer ou de qualquer outra coisa. Uma vez sonhei que a minha mãe havia morrido, acho que eu tinha uns 12 anos. Passei uma semana inteira mal. Tinha raiva daquele pensamento. O meu maior medo sempre foi perder minha mãe. E comecei a entender por que alguém que eu não conhecia fazia tanta parte da minha vida. Eu via as fotos dela pela casa da Tia Lygia e sentia como se eu a conhecesse intimamente. Eu passava horas e horas a fio só imaginando como seria ter conhecido ela. Ter convivido com ela. Quando eu era criança, chorava baixinho de saudade dela. E eu nem a conheci!
Foi vendo na minha mãe, toda a amorosidade e afeto que ela carrega nela, que entendi como se perpetua uma saudade de alguém que nunca se conheceu. Nas coisas que a minha mãe faz, nas coisas que ela é, tem um pouquinho de pai e mãe, tem muito de história e tem um processo incessante de aprendizagem que a gente leva para a vida toda e passa adiante.
Eu não sei, mas tem coisas na cozinha que eu aprendi com a minha avó. E não foi ela que me ensinou. Foi minha mãe. Tem coisas no meu jeito de ser que eu aprendi com a minha avó. E não foi ela que me mostrou. Tem coisas no meu temperamento que dizem respeito a ela. Tem formas de agir e de reagir, que aprendi com ela, mesmo sem ela saber, mesmo sem eu saber.
O que mais forte me bate nisso tudo, é ver a minha mãe, aquela que me cuidou, sem o seu alguém que a cuidasse. Porque pai e mãe cuidam. Mas na nossa sociedade, ainda quem cuida por definitivo em grande parte é a mãe. E eu passei uma vida inteira vendo a pessoa que eu mais amava sem a sua cuidadora. Para a cabeça de uma criança é muito triste. E a criança cresceu, a mãe cresceu, e ainda sinto o quanto ela precisa da sua cuidadora. O quanto uma pessoa de 54 anos precisa de cuidado. Não qualquer cuidado, mas o cuidado especial. Eu sei que não tenho sido uma boa cuidadora para ela, mas sempre quis ser, porque sempre achei muita crueldade ela ter enfrentado toda uma vida sem a sua cuidadora. Com dois filhos, um casamento nada fácil, uma profissão que exige dedicação e uma vida militante ativa. E pensando isso, me pego pensando que não tem idade para querer ser cuidado. Não tem idade para sentir saudade da mãe, não tem idade para ter inseguranças, não tem idade para ter medo do escuro, do trovão, da chuva forte.
Ela vive falando sobre o cuidado. Eu no meu egoísmo, muitas vezes não cuido. E ela não sabe, mas cada vez que descuido, se apaga uma luz dentro do peito e ele fica sombrio e apertado. Sem a minha cuidadora, eu não sei como seria minha vida. E me entristeço de pensar que um dia eu e ela não estaremos mais juntas, mas ao mesmo tempo me dá vontade de cuidar dela até o último minuto.
E pensando nisso, foi que eu entendi porque meu dia se entristeceu quando me dei conta que meus trinta anos de vida também representam trinta anos de saudade. E podem se passar os anos que forem, nada se perderá, tudo se transformará. E cada geração só faz sentido porque carrega algo da geração que a antecedeu e assim por diante. E esse sentido não precisa ser exatamente um filho e nem ser de sangue, mas sim, de história.
Algumas teorias sobre o ser humano defendem que os mamíferos se caracterizam principalmente por necessitar de outro mamífero para o seu cuidado. E que os seres humanos se diferenciam dos outros mamíferos pois sem afeto não vivem. Sem afeto morrem.
E eu me pergunto, principalmente lembrando das pessoas que gostam de ser cuidadosas com todo mundo: quem cuida do cuidador? Esse vídeo eu fiz para ela no aniversário de 2012.  



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