quinta-feira, 26 de abril de 2018

Coisas do dia-a-dia

Se tem alguém que observa o que parece para muitos “comum”, esse alguém sou eu. Talvez seja algum tipo de neurose, mas quanto mais comum ou natural algo pareça para a maioria, mas eu observo.

É sabido que para muitos a pobreza é comum, é resultado do destino, ou ainda mais maluco: é “natural”. “Pobrezinho, que azar o dele, nasceu assim”. Ou então, “puxa, que pecado”. Ou “puxa, por que não vai arrumar trabalho?”
O fato é que diante da correria do dia a dia estamos dentro de nossas bolhas, vez em quando desperta uma atenção rápida aqui, outra ali, mas passa em segundos e vida que segue.
Existe quem se dedique a essa preocupação a longo e médio prazo, através de políticas, de lutas e de tudo mais que já sabemos e é a isso que muitos de nós nos debruçamos (acredite, há que não se debruce sobre nada disso ou sequer se importe). Contudo, existe uma questão sobre esse tema que diz respeito ao imediato, ao presente, ao real diante dos olhos.
(uma pausa para me lembrar do Programa Fome Zero do Lula, que, ainda hoje, há quem – de barrigas bem cheias - realmente ache que pobre não precisa comer e que o Lula só fez isso para conseguir voto.)
É a partir desse real diante dos olhos que gostaria de falar. É desse real diante dos olhos que o concreto se torna sensível. Ele é o que pode ser observado, é o que pode ser considerado a base de tudo que existe, inclusive das estatísticas. Ontem estava num mercado dentro de um Shopping, e um moço me abordou pedindo para botar no meu carrinho um saco de leite em pó. A primeira coisa que a gente pensa quando é abordado é: onde está o erro, onde estou sendo passada para trás de alguma forma. Logo depois bate um sentimento de “nossa, da onde eu tirei me armar desse jeito, é um saco de leite!”
Imediatamente me lembrei de um vídeo que tinha assistido na noite anterior, onde lá pelas tantas a mulher relata que foi com o dinheiro contado no mercado e pediram para ela exatamente leite. E que ela não comprou, pois precisava comprar suas coisas e não sobraria nada para este leite. Depois ela foi para a casa pensando que poderia ter deixado de comprar um pacotinho de presunto para levar aquele leite. A coincidência foi o cara me pedir exatamente leite. Eu estava quase rompendo a comunicação com ele, quando pensei, gente, que argumentos mais a gente vai criar para não ajudar nesse real imediato aqui?
Ele suplicou que eu decidisse logo antes que o segurança o botasse para fora.
Botei o saquinho no carrinho e comecei a observar.  Já no caixa, ele pediu um saco de biscoito para outra mulher e um saco de não sei quê para outra e mais algo para outra. Enfim, ele pegou o que precisava. Conseguiu. Foi uma corrida contra o relógio do segurança. Há quem diga que isso é “vida fácil”... “puxa, não trabalha, só fica pedindo”. Olha, vida nada fácil essa de pedir. Já experimentou pedir alguma coisa? Constrangedor.
Observei que os pedidos eram para mulheres. Isso daria uma tese de doutorado. Vamos pular essa parte sobre empatia e solidariedade femininas.
 Ele pediu algo para duas mulheres atrás de mim na fila, e elas negaram. Após ele se afastar, surgiram aqueles comentários dos quais não posso sequer julgar, eu mesma já os repeti em algum momento da vida talvez não numa situação dessas, mas certamente a respeito da lógica de “dar coisas”, onde criamos os mais absurdos argumentos para seguirmos confortáveis de cabeça fresca com nosso egoísmo de classe (de classe média, né, porque classe alta não vai naquele mercado ali, não).
As frases proferidas foram bem clássicas: “ele pega esse saco de leite e de biscoito, e troca por droga”. Surpreendente, fiquei pensando quantos quilos de droga ele vai conseguir com um saco de biscoito e de leite. Mas veio a outra frase ainda mais inusitada para mim: “isso aí que ele tá pedindo, ele diz que é para o filho e revende lá na rua.” Gente! Que trabalheira revender isso! Eu, na minha estúpida timidez momentânea, porque sim, eu ainda carrego traços de timidez em mim, acabei não interferindo naquele diálogo e deixando meu coração palpitar só pra mim. O papo das duas seguiu, voltaram a falar do fulano, da ciclana, do beltrano e tudo voltou ao normal.
Enquanto isso o cara corria de um lado para o outro para conseguir pegar tudo que pediu antes de ser colocado para rua.
“Ingrid, isso é comum”... okey, por todo lado onde a gente olha nesse Brasil isso é “comum”. É?Comum para quem, hein? Se é para ti, alguma coisa certamente está fora da ordem, como dizia Caetano.
Quantas vezes eu mesma repeti de alguém, porque ideia minha não foi e acabou virando: “eu não ajudo gente pedindo, não acho correto.” Olha, eu costumava dizer isso por um bom tempo. Inclusive partia para o lado pedagógico: “não ajudo gente pedindo, não é pedagógico”. AFFFFFFFFFFFFFF que mau emprego da palavra “pedagógico”. Precisei me libertar de jargão escutado não sei onde por não sei “quens” aos 35 anos somente. Porque sim, precisa de política, de luta, de programa social, de projeto, de TUDO. Mas aquele “aqui e agora” daquela criatura que NÃO, não vai arrumar um emprego porque NÃO, não tem emprego para todo mundo, faz o quê? E não, não daria tempo de pegar o celular e ligar para a Secretaria de Assistência Social, não. O tempo era um flash.
A comodidade de dizer que arrume emprego porque fulano batalhou e conseguiu, beltrano batalhou e conseguiu, serve para um e outro. Gente, não serve para todo mundo. Unicamente porque no nosso planetinha, no sisteminha economicozinho que a gente inventou, não tem trabalhinho para todo mundo. Simplesinho assim. Marx já falava no exército industrial de reserva, mas que nem é mais industrial, é só um exército de reserva mesmo. São pessoas excedentes, que sobram aos montes por aí mundo afora, que garantem o bom andamento da economia daqueles que têm emprego, tendo em vista que sua inadaptação gera a imediata substituição por quem está desempregado. Ponto. Segue a roda, segue o fluxo.
Não estou, com isso, dizendo que é para sair por aí dando coisas pra todo mundo que pedir. Mas estou sim, problematizando, para além das nossas históricas frases prontas, que diante de algo na nossa frente, nos nossos olhos, desnaturalizemos tanta coisa errada abaixo de jargões sem pé nem cabeça. Se não tem como ajudar, não tem, tudo bem. Estamos todos ralados mesmo. Mas não ajudar sob argumentos confortáveis ou sequer questionar que outros meios de médio e longo prazo poderiam sanar esses problemas, aí sim, soa muito irracional toda essa tal de coisa “comum” que vemos todos os dias.

Essa reflexão se encerra sem nenhuma conclusão, nenhuma fórmula, tentando não generalizar esses casos, mas abrindo para pensarmos sobre a naturalização do que nunca foi nem nunca será o natural do estado das coisas. Não serve só para a pobreza. Serve para tudo o que há.

1 comentários:

Anônimo,  26 de abril de 2018 às 20:57  

É isso aí Fifi,tem que ajudar de todas as formas possíveis, se puder ensinar a pescar, beleza, mas se puder dar o peixe, dá!
O peixe daquele dia pode fazer muita diferença na vida de uma ou várias pessoas.
O leite, os biscoitos e seja lá o que for é para comer sim!
Boa reflexão!
Rose Freitas

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