Coisas do dia-a-dia
Se tem alguém que observa o que
parece para muitos “comum”, esse alguém sou eu. Talvez seja algum tipo de
neurose, mas quanto mais comum ou natural algo pareça para a maioria, mas eu
observo.
É sabido que para muitos a
pobreza é comum, é resultado do destino, ou ainda mais maluco: é “natural”. “Pobrezinho,
que azar o dele, nasceu assim”. Ou então, “puxa, que pecado”. Ou “puxa, por que
não vai arrumar trabalho?”
O fato é que diante da correria
do dia a dia estamos dentro de nossas bolhas, vez em quando desperta uma
atenção rápida aqui, outra ali, mas passa em segundos e vida que segue.
Existe quem se dedique a essa
preocupação a longo e médio prazo, através de políticas, de lutas e de tudo mais
que já sabemos e é a isso que muitos de nós nos debruçamos (acredite, há que
não se debruce sobre nada disso ou sequer se importe). Contudo, existe uma
questão sobre esse tema que diz respeito ao imediato, ao presente, ao real
diante dos olhos.
(uma pausa para me lembrar do Programa
Fome Zero do Lula, que, ainda hoje, há quem – de barrigas bem cheias -
realmente ache que pobre não precisa comer e que o Lula só fez isso para conseguir
voto.)
É a partir desse real diante dos
olhos que gostaria de falar. É desse real diante dos olhos que o concreto se
torna sensível. Ele é o que pode ser observado, é o que pode ser considerado a
base de tudo que existe, inclusive das estatísticas. Ontem estava num mercado dentro de um Shopping, e um
moço me abordou pedindo para botar no meu carrinho um saco de leite em pó. A primeira
coisa que a gente pensa quando é abordado é: onde está o erro, onde estou sendo
passada para trás de alguma forma. Logo depois bate um sentimento de “nossa, da
onde eu tirei me armar desse jeito, é um saco de leite!”
Imediatamente me lembrei de um
vídeo que tinha assistido na noite anterior, onde lá pelas tantas a mulher
relata que foi com o dinheiro contado no mercado e pediram para ela exatamente
leite. E que ela não comprou, pois precisava comprar suas coisas e não sobraria
nada para este leite. Depois ela foi para a casa pensando que poderia ter
deixado de comprar um pacotinho de presunto para levar aquele leite. A
coincidência foi o cara me pedir exatamente leite. Eu estava quase rompendo a
comunicação com ele, quando pensei, gente, que argumentos mais a gente vai
criar para não ajudar nesse real imediato aqui?
Ele suplicou que eu decidisse
logo antes que o segurança o botasse para fora.
Botei o saquinho no carrinho e
comecei a observar. Já no caixa, ele
pediu um saco de biscoito para outra mulher e um saco de não sei quê para outra
e mais algo para outra. Enfim, ele pegou o que precisava. Conseguiu. Foi uma
corrida contra o relógio do segurança. Há quem diga que isso é “vida fácil”... “puxa,
não trabalha, só fica pedindo”. Olha, vida nada fácil essa de pedir. Já experimentou
pedir alguma coisa? Constrangedor.
Observei que os pedidos eram para
mulheres. Isso daria uma tese de doutorado. Vamos pular essa parte sobre
empatia e solidariedade femininas.
Ele pediu algo para duas mulheres atrás de mim
na fila, e elas negaram. Após ele se afastar, surgiram aqueles comentários dos
quais não posso sequer julgar, eu mesma já os repeti em algum momento da vida
talvez não numa situação dessas, mas certamente a respeito da lógica de “dar
coisas”, onde criamos os mais absurdos argumentos para seguirmos confortáveis
de cabeça fresca com nosso egoísmo de classe (de classe média, né, porque
classe alta não vai naquele mercado ali, não).
As frases proferidas foram bem
clássicas: “ele pega esse saco de leite e de biscoito, e troca por droga”.
Surpreendente, fiquei pensando quantos quilos de droga ele vai conseguir com um
saco de biscoito e de leite. Mas veio a outra frase ainda mais inusitada para
mim: “isso aí que ele tá pedindo, ele diz que é para o filho e revende lá na
rua.” Gente! Que trabalheira revender isso! Eu, na minha estúpida timidez
momentânea, porque sim, eu ainda carrego traços de timidez em mim, acabei não
interferindo naquele diálogo e deixando meu coração palpitar só pra mim. O papo
das duas seguiu, voltaram a falar do fulano, da ciclana, do beltrano e tudo
voltou ao normal.
Enquanto isso o cara corria de um
lado para o outro para conseguir pegar tudo que pediu antes de ser colocado
para rua.
“Ingrid, isso é comum”... okey,
por todo lado onde a gente olha nesse Brasil isso é “comum”. É?Comum para quem,
hein? Se é para ti, alguma coisa certamente está fora da ordem, como dizia
Caetano.
Quantas vezes eu mesma repeti de
alguém, porque ideia minha não foi e acabou virando: “eu não ajudo gente
pedindo, não acho correto.” Olha, eu costumava dizer isso por um bom tempo.
Inclusive partia para o lado pedagógico: “não ajudo gente pedindo, não é
pedagógico”. AFFFFFFFFFFFFFF que mau emprego da palavra “pedagógico”. Precisei
me libertar de jargão escutado não sei onde por não sei “quens” aos 35 anos
somente. Porque sim, precisa de política, de luta, de programa social, de
projeto, de TUDO. Mas aquele “aqui e agora” daquela criatura que NÃO, não vai
arrumar um emprego porque NÃO, não tem emprego para todo mundo, faz o quê? E não, não daria tempo de pegar o celular e ligar para a Secretaria de Assistência Social, não. O tempo era um flash.
A comodidade de dizer que arrume
emprego porque fulano batalhou e conseguiu, beltrano batalhou e conseguiu,
serve para um e outro. Gente, não serve para todo mundo. Unicamente porque no
nosso planetinha, no sisteminha economicozinho que a gente inventou, não tem trabalhinho
para todo mundo. Simplesinho assim. Marx já falava no exército industrial de
reserva, mas que nem é mais industrial, é só um exército de reserva mesmo. São
pessoas excedentes, que sobram aos montes por aí mundo afora, que garantem o
bom andamento da economia daqueles que têm emprego, tendo em vista que sua
inadaptação gera a imediata substituição por quem está desempregado. Ponto.
Segue a roda, segue o fluxo.
Não estou, com isso, dizendo que
é para sair por aí dando coisas pra todo mundo que pedir. Mas estou sim,
problematizando, para além das nossas históricas frases prontas, que diante de
algo na nossa frente, nos nossos olhos, desnaturalizemos tanta coisa errada
abaixo de jargões sem pé nem cabeça. Se não tem como ajudar, não tem, tudo bem.
Estamos todos ralados mesmo. Mas não ajudar sob argumentos confortáveis ou sequer
questionar que outros meios de médio e longo prazo poderiam sanar esses
problemas, aí sim, soa muito irracional toda essa tal de coisa “comum” que
vemos todos os dias.
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